sexta-feira, 21 de maio de 2010

Os negócios da Saúde

Neste momento, em que todos os dias ouvimos as notícias dos milhares de desempregados portugueses, todos vítimas da crise financeira e económica e em última análise do sistema, há uma consolação que nos resta. Quando se fecharem todas as portas, está ainda aberta a porta do Serviço Nacional de Saúde. Uma porta que dá muitas vezes para labirínticos corredores de burocracia e de tempo de espera, mas que está aberta. E lembro-me sempre do que está a acontecer, com 45 milhões de norte -

- americanos, que além de estarem lançados na miséria pela espiral financeira, muitos deles despejados das casas por falta de pagamento do crédito bancário, não têm nenhum serviço de saúde. Terá Obama coragem para aproveitar a crise e instaurar um SNS, vencendo as ameaças das Companhias de Seguros que Hillary Clinton não teve a coragem ou não foi capaz de vencer quando era esse o seu projecto? Os norte-

- americanos de baixa condição social, que não têm seguros ou que têm esses seguros de bairros pobres que só cobrem o mínimo, o que é que podem fazer se tiverem uma leucémia ou partirem uma perna? Ficam entregues ao destino ou à caridade. Já nem sequer se podem “empenhar” e pagar o resto da vida, porque não podem recorrer ao crédito. Estranho destino o dos cidadãos de um dos países mais ricos do mundo, centro do Império e onde uma parte da população pode vir a situar-se na área da dos “ países em vias de desenvolvimento”.

Era o que nos teria sucedido, ou pode vir a suceder, se tivéssemos ido nos cantos de sereia dum sistema de saúde baseado nos seguros de saúde ou no pagamento de acordo

com a situação social.

O nosso SNS vive do orçamento geral do Estado e portanto dos impostos e de outros rendimentos do Estado. Se juntarmos os adultos que não têm rendimento suficiente para pagar impostos e as crianças e jovens, provávelmente há 4 milhões que os não pagam

( a não ser indirectamente o IVA). Portanto quem paga impostos está antecipadamente a pagar os cuidados de saúde de que pode vir a necessitar e, num princípio de solidariedade, a pagar os cuidados daqueles que são mais pobres. Este é o mesmo princípio da lei que vigora no SNS inglês, um dos primeiros a ser criado depois dos soviéticos e a que vigora nos países escandinavos.

No tempo da nossa ditadura só beneficiavam dos serviços os que trabalhavam e portanto descontavam para a “ Caixa” e daí que os mais idosos ainda hoje digam que vão à

“ Caixa” quando vão ao Centro de Saúde. Eu própria quando estou a lidar com pessoas mais idosas sou capaz de dizer então “ o que é que lhe disse a minha colega da Caixa “?,

para me fazer entender. No entanto, o Centro de Saúde, já entrou suficientemente na cabeça das pessoas. Mesmo para reclamar, umas vezes com razão, outras vezes sem ela. Na altura das “Caixas”, os que se serviam dos serviços de saúde, particularmente os hospitalares, tinham que ir buscar à Câmara Municipal o certificado de “indigente”

( palavra adocicada mais tarde por “ sem rendimentos”) para não pagarem aquilo que de facto não podiam pagar. Era a “santa caridadesinha” na sua plena forma. Mas atenção que este discurso está aí com outras roupagens! Actualmente quem benefiaria dessas situação seriam as Companhias de Seguros. Não se estranhe portanto que ao ouvirmos políticos defenderem o fim do SNS gratuíto no curriculum ligações a companhias de seguros. É a endogamia nacional. Ou internacional...

Nesta época de crise o SNS gratuíto não pode querer dizer, no entanto, um SNS – saco azul, onde se vai buscar sem responsabilidade. Tem de haver uma responsabilização do cidadão perante o seu SNS. Ninguém gosta de ser hospitalizado e muito menos de fazer cirurgias sem necessidade e por isso as taxas moderadoras não fazem sentido. E muito menos se pode considerar que um médico interna um doente sem necessidade num hospital já apinhado. No entanto, temos que reflectir todos, utentes e médicos, sobre o uso dos exames auxiliares de diagnóstico e sobre o uso dos medicamentos. Ainda bem que temos meios técnicos correntes sofisticados e ainda bem que temos medicamentos que prolongam a vida e lhe dão qualidade. Mas... cada vez que, com um gesto se pede um exame ou se prescreve um medicamento, temos que saber que se gasta dinheiro. Às vezes muito dinheiro. E os utentes, rodeados por uma informação medicalizada e com a ideia da saúde e da vida eterna a todo o custo, têm também que reflectir sobre isso. E sobre o seu próprio corpo...

Quantas vezes em relação a doentes que me dizem “ então agora não é preciso fazer mais análises?” ou “ para isto não há medicamento nenhum?” e eu respondo pela negativa, vejo uma certa desilusão. Nas farmácias vendem-se medicamentos e também

“ suplementos alimentares”, cremes, leites de beleza, pastilhas, “bem estar”. O ambiente é refrescante, claro, luminoso. Apetece mesmo comprar! É a sociedade de consumo no seu pleno. Diga-se de passagem que quando os portugueses descobriram a cana de açucar e depois o respectivo conteúdo, aquele granulado doce era vendido nas farmácias como um bem raro e precioso.

Qual é o negócio?

Qual é então o negócio e o objectivo dos privados, dos hospitais que nascem como cogumelos? Nem há população com seguros, nem convenções, nem há “ricos” que os paguem. O único objectivo das grandes empresas de saúde privadas é que o Estado não cumpra o seu dever fornecendo o máximo e o melhor de serviço de saúde. Desse modo eles poderão suprir essa falta sendo eles próprios fornecedores de serviços ao Estado.

Se o Estado não faz hemodiálise, o Estado será cliente dos serviços privados. Se o Estado não faz radioterapia, o Estado será cliente dos serviços privados. Se o Estado não fizer cirurgia bariátrica aos grandes obesos, o Estado terá( teria) que ser cliente dos serviços privados.

Nos hospitais privados, as consultas são mais baratas do que nos consultórios individuais e os médicos até não são mal pagos. Mas logo ali pedem-se análises, ecografias, radiografias, exames cardíacos que serão feitos...ali. Compreende-se a fúria e as providências cautelares com que foram recebidos os postos publicos de análises abertos nos seis Centros de Saúde ligados aos Hospitais de Santa Maria – Pulido Valente. Fúria, providências cautelares e porque não algumas ameaças?

É este o negócio. Mas, no entanto, em tempo de crise, o negócio está tremido. Ninguém os avisou e isto do capitalismo sem freio é de facto como o tal bater de asas da borboleta que vai desencadear uma catástrofe no outro lado do mundo. Neste caso em todo o mundo.

Mas se o negócio está tremido, esperam-se com lógica chuvas de críticas sobre o SNS. Este de facto tem problemas. Por exemplo ter havido anos em que só entraram para Medicina em todo o país 190 alunos, os quais só doze anos depois se tornam especialistas.

Actualmente e até 2012, altura em que começaremos a receber os novos especialistas depois do alargamento de entradas, vai ser muito difícil manter urgências eficazes em todo o país. Não serão por acaso os responsáveis por este buraco os mesmos que agora criticam o SNS?

In Revista Perspectiva nº 18, Março de 2009.