sexta-feira, 21 de maio de 2010

Uma questão de bitola

Estou a referir-me aos comboios. E particularmente ao projecto do comboio de alta velocidade que poderá ligar-nos a outros países, se as forças que puxam para trás não o encolheram.

Só viajo de comboio. E uma a duas vezes por ano saio para o resto da Europa através do caminho de ferro. Quanto às nossas possibilidades de, por esse caminho, chegarmos aos outros países europeus a explicação é simples. Daqui para Madrid viaja-se num comboio confortável, mas parte-se daqui às 22h00 de um dia e chega-se a Madrid às 8h00 do dia seguinte. É simpático, mas longo. E chegados a Madrid por aí ficamos. Entre a Espanha e a França e o resto da Europa levanta-se o muro dos Pirinéus. Se quisermos ir pelo Sul temos mais umas boas horas até Barcelona com mudança de comboio e de estação e depois de Barcelona para França outras tantas, com mudança de comboio.

Resta-nos então o velho Sud-Expresso.

É nesse que eu vou para a “Europa”. E é aliás esse o trajecto mais rápido, apesar de tudo. É, em termos de comboio, a nossa porta de partida e chegada.

Um parque temático

Pois bem, aqueles da minha geração que tiveram nostalgia das viagens dos seus verdes anos podem experimentar, porque está tudo igual. Parte-se de Santa Apolónia às quatro da tarde e chega-se a paris no dia seguinte cerca das duas da tarde, não já à gare de Austerlitz mas à de Montparnasse. É a mesma carruagem balançante que atravessa o nosso interior, o mesmo wagon-restaurante, com os candeeiros sobre as mesas e os empregados simpáticos que nos servem. As mesmas casas de banho … Só falta a entrada dos Pides em Vilar Formoso, mas temos a paragem durante a noite em Medina del Campo. Eu gosto daquilo. Instalo-me na cabine como se fosse num escritório, leio, escrevo e durmo durante a noite. O pior é que às sete da manhã temos que pegar nas malas, descer do comboio, atravessar gares, por vezes subir e descer escadas e esperar para nos metermos no TGV que faz Hendaye – Paris. Tudo isto por causa da bitola: as linhas de comboio de Espanha e Portugal têm uma distância diferente dos carris dos franceses, medida que foi tomada após as invasões de Napoleão, não fosse eles virem outra vez e de comboio! No regresso, outra vez a mesma cena, mas desta vez em Irun. Para mim de forma agravada porque venho carregada de livros. Multiplico as mochilas e as rodinhas e juro que nunca mais.

E, no entanto, quando chego à “Europa” corro as cidades e as fronteiras sem qualquer paragem, com troços de TGV, alternando com troços sem TGV, sempre sem sobressaltos e em comboios de alta qualidade. Paris – Berlim, Paris – Viena, Paris – Veneza, Paris – Roma, Viena – Budapeste. Faço Paris – Bruxelas em uma hora e Paris – Amesterdão em três. Ora bem, quando os

estrangeiros entram em Portugal devem ter a sensação que eu tive ao entrar na Roménia quando fiz o Oriente – Expresso. Sair no comboio a meio da noite, meter-me em carruagens do fim do mundo, com casas de banho do fim do mundo (vá lá que as nossas têm sanitas embora em mau estado, as deles têm buracos – mais higiénico, mas um pouco incómodo), horários de “llega quando lhega”, estofos poierentos. Muito típico e divertido. Deve ser a mesma sensação que têm os estrangeiros ao entrar na Península Ibérica. É uma espécie de safari, olham para nós como macaquinhos simpáticos e até estranham que os macaquinhos saibam tão bem falar línguas. Deve ser por isso que o comboio vem sempre cheio e esgota os lugares com muita antecedência. Vêm ao parque temático – os países de antigamente.

Este é o país que querem?

É este o país que querem aqueles que rejeitam o comboio de alta velocidade? Querem que sujemos a Roménia ou a Albânia da ponta ocidental? Ou querem mudar a bitola mas manter os mesmos comboios?

Pormos uma grelha à volta do país e vendermos bilhetes podia ter a sua graça se fossemos auto-suficientes. Se produzíssemos o que comemos, se tivéssemos dinheiro para comprar tecnologia. Mas não é assim. Somos dependentes do estrangeiro, estamos integrados na Europa e dentro desta não há fronteiras.

O país pequenino e atrasado de Salazar durou quase cinquenta anos e só foi bom para as classes privilegiadas. Quem tiver dúvidas que reveja os documentários do António Barreto sobre o passado. Era um país miserável, de pés descalços, desdentados e analfabetos. Os partos eram uma ameaça de morte e por isso os gritos e as caras de caso do mulherio circundante antecipavam as dores reais. Trabalhar com as mãos era uma vergonha. A esmola uma instituição. As senhoras finas “não precisavam de trabalhar, mas aprendiam as prendas domésticas para saber mandar”. A corrupção era a regra, mas havia censura e não havia processos. O país onde se tratavam as senhoras pobres por “tiazinhas” e onde agora as “tias” falam dos “piquenos”.

O “antigamente é que era bom” acabou. Mas no entanto há sempre as forças que puxam para trás. Que têm nostalgia do país pequenino, salazarento, bolorento. Que acham que o investimento público deve ser feito nas pequenas e médias empresas, como ele fazia, porque esse era o seu apoio social. Mesmo que elas produzam mal e mau. Só que nessa altura vendia-se obrigatoriamente o mau para as colónias. E agora que já não há o mercado das colónias? Fechamos a porta e consumimos nós Mas como é que podemos consumir se tantos não têm dinheiro porque estão desempregados? No entanto dizem que é necessário “gastar menos”. Já explicaram onde: na Saúde e na educação, nos investimentos públicos em geral.

Este é o país da bitola estreita. O país que tem medo de ser invadido. O país de vistas curtas. O país que fala “verdade” a respeito dos outros, mas que omite discreta e sonsamente as suas tristes verdades. O país da depressão.

O país que evoca as glórias do passado, de forma provinciana.

Esse é o país que não podemos querer e que não podemos deixar para os nossos filhos. Tem uma bitola demasiado curta.

In Revista Perspectiva, 2009.