sexta-feira, 14 de maio de 2010

Solidariedade ou Esmola

Repartição das consequências da crise? Solidariedade? Só se for esmola.

Vejamos:

O salário médio dos 50 primeiros patrões franceses é de 383.000€ por mês e aumentou 20% em 2007. O patrão mais bem pago da França, Jean-Philippe Thierry, dirigente dos Seguros Allianz, onde deixamos o nosso dinheiro, tem como salário 1,9 milhões de euros por mês. O segundo classificado, Pierre Verluca, da Vallourec aumentou o salário 32% em 2007 (12,4 milhões de euros num ano) embora a empresa só tenha aumentado 8% de lucro.

Segundo a revista francesa Capital sucederam-se os beneficiários deste Jackpot, quando a crise já estava a estalar.

Mas quando as empresas financeiras rebentam, mesmo este pessoal recebe os chamados “pára-quedas dourados”. Quando Standley O’Neal, presidente da Merrill Lynch foi “despedido” recebeu 161 milhões de dólares; quando em 3 de Outubro de 2008 o banco franco–belga Dexia teve que ser recapitalizado de urgência, o patrão receberia 3,7 milhões de euros. Parece que vai renunciar.

Em França o inquérito anual da revista Expansão publicado em Maio revelava que os patrões do CAC 40 aumentaram os salários de 58% em 2007.

Entretanto calcula-se que estes cérebros responsáveis pelas manobras na alta finança fizeram desfazer-se em fumo 25.000 biliões de dólares só nos EUA.


Os que aterram sem pára-quedas


Consequências? Nos EUA nem todos os cidadãos estão inscritos na Segurança Social e quando estão só recebem na reforma 40% do salário. O restante depositaram nos chamados “fundos de pensão”, que são jogadas na bolsa por estas empresas financeiras. O que aconteceu então? Cinquenta e um milhões de americanos viram esfumar-se as suas economias de vários anos em poucos dias. Os fundos perderam 2.000 biliões de dólares em quinze meses. Os responsáveis? São os tais que caíram com o pára-quedas dourado.

O mesmo se passa na Polónia, na Hungria e na República Checa, cujos governos e populações caíram no canto da sereia da “liberdade” de descontar para onde entendem e não haver obrigatoriedade de descontar para a Segurança Social do Estado. Já ouvimos esse canto da sereia aqui e sempre ligado a governantes com um pé no Governo e outro nas Companhias de Seguros. Felizmente que em Portugal se tem mantido a obrigatoriedade da Segurança Social do Estado. Mas quantas vezes ouvimos regressar a conversa de que “tudo pode ser privatizado” ou então de que “uma parte vai para o Estado e a outra pode ser alternativa e investida em instituições privadas que cuidarão do nosso dinheiro como cuidam do deles”? Os resultados estão à vista.

As saídas com os pára-quedas dourados acarretam desemprego e miséria para muitos outros. Nas grandes cidades já se assiste aos pobres a recuperarem restos nas exposições de alimentação. E talvez sejam apenas pobres “assim-assim” ou “remediados”, como se dizia antigamente.

E o pânico reina entre os chamados quadros, o pessoal que é bem tratado, trabalha nas gaiolas de vidro dos open-space e tem mordomias. Mas os accionistas não querem baixar os lucros. Consta que em Portugal serão despedidos 500 delegados de informação médica. É o pânico a invadir a classe média.

Mas perante tantos milhões e biliões distribuídos pelos responsáveis da crise pode-se falar de modestas somas que poderiam ter outro destino: bastavam 22,2 biliões de euros para erradicar a fome no mundo e 3 biliões para tratar 19 milhões de crianças. Ou talvez bastasse que se abrisse a porta aos produtos agrícolas dos países pobres.

Indo procurar em Marx os comentários ao “dinheiro usurário” ou seja o capital financeiro que na época era impossível imaginar a dimensão que viria a ter um século e meio depois ele cita (imagine-se!) Lutero:

“Na forma à moda antiga, ainda que constantemente renovada, do capitalista, no usuário (o que empresta dinheiro a juros), Lutero ilustra muito bem a ânsia de domínio como elemento do impulso para o enriquecimento:”Os pagãos puderam calcular pela razão que um usuário é um quadruplo ladrão e assassino. Nós cristãos, porém, temo-los em tal honra que quase os adoramos pelo seu dinheiro…” “(…) os pequenos ladrões estão a ferros, os grandes ladrões andam a ostentar ouro e seda… por isso não há maior inimigo do homem na terra (depois do diabo) do que um avaro e usuário, pois ele quer ser deus sobre todos os homens”, quer “(…) que ele sozinho possa ter tudo e que toda a gente receba dele como de um deus e seja eternamente seu servo”.

Depois explica, pedagogicamente como é seu hábito, que o dinheiro que não se transforma em mercadoria para se transformar em mais dinheiro é a maior anomalia do sistema.

Eu vou buscar a Frei Bento Domingues e à sua crónica de domingo no Público (7.12.08) para dizer que:

“Nem só de pão vive o homem, mas sem pão é difícil”.

“(…) A ética desses investimentos e jogos é anti-solidária: a riqueza de uns implica a pobreza de outros”,

Portanto, solidariedade é inverter o sistema e não atribuir isto apenas a falhas ou erros de ética. Isto é o sistema. Solidariedade é invertê-lo. O resto é esmola.

In Revista Perspectiva nº 16, Dezembro de 2008.