sexta-feira, 21 de maio de 2010

Quem dá aos pobres empresta a Deus

A propósito dos incidentes do Bairro da Bela Vista em Setúbal vários “sábios” em ciências humanas e desumanas aproveitaram para criticar o alojamento em bairros sociais, desta vez encontrando neles a causa de tais distúrbios . Não se percebe bem o que é que estes sábios queriam e querem. Que as pessoas tivessem permanecido nos bairros da lata? Gostavam mesmo é de os ver na Curraleira, na Musgueira, “nas ilhas” do porto, nos bairros degradados de Setúbal, na Azinhaga da Torrinha em Lisboa, na Pedreira dos Húngaros de Caxias? Claro que esses cenários eram óptimos para grupos de senhoras “tias” e meninas betas irem fazer caridade ou “solidariedade”, em dose q.b. para ficarem de consciência descansada e o resto da semana dizerem “nós, graças a Deus, não nos falta nada” ou seja, várias casas, carros, barcos e motas, viagens de luxo, propinas milionárias em colégios estrangeiros e muita ociosidade. E como quem dá aos pobres empresta a Deus, isto funciona como uma espécie de PPR que soma pontos para a entrada no paraíso. Mesmo assim alguns filhos maus destas famílias bem fazem das suas. Mas não precisam geralmente de exercer violência.

Qual seria então a solução? Alguns sociólogos dizem de facto que não se devem criar guetos e que as pessoas a realojar deveriam ser misturadas nos bairros das pessoas “normais”. Mas quando isso acontece, aqui d’el-rei, que lhes metem marginais no prédio, ou que a casa se desvaloriza porque no edifício ao lado moram ciganos. Mas o gueto será mais gueto se for afastado com uma distância higiénica, se não tiver transportes, se não tiver escolas, lojas e espaço para associações e festas

Não se fala dos casos bem sucedidos, como os projectos SAAL, a Quinta da Cabrinha e numerosos outros casos. Como sempre as situações bem sucedidas não têm protagonismo nem visibilidade. Acho que todos deveríamos ter orgulho em ver milhares de pessoas que toda a vida viveram em condições infra-humanas (ao lado das outras em condições boas ou muito boas) e que passaram a ter sala, cozinha, quartos, água e luz. Já experimentaram ver a alegria dessas pessoas? Pode-nos compensar de muitas tristezas da vida. Já me aconteceu entrar sem aviso em casas de vários destes novos bairros e fico comovida como é que aquelas mulheres, depois de viverem toda a vida na terra e na lama, “aprenderam” a ter móveis arrumados, com bibelôs a seu gosto, tudo limpo. E digo as mulheres, porque quem manda nos bairros são as mulheres, quando há associações baseiam-se nelas e são elas que podem mediar.

Olha lá a mãozinha

Mas a verdade é que há uma área social que está sempre a vigiar e a chorar com a mão esquerda o que dá com a direita. O que dá, não. O que é obrigado a dar através dos impostos. O mesmo clamor se ouve em relação ao rendimento social de inserção e ao salário mínimo. O que eles gostariam mesmo é que os impostos fossem gastos na segurança, isto é na protecção dos seus bens e das suas pessoas. O que sobrasse seria para esmolas, que é o que deve entender-se pela “perspectiva social” política, visto nem quererem rendimento social de inserção, nem aumento do salário mínimo, nem bairros de realojamento e apelarem à “flexibilidade”. Então o que é social?

Entretanto vêem-se passar debaixo do nosso nariz os milhões do BPN, do BPP e do BCP, com os seus protagonistas, Dr. Oliveira e Costa, Dr. Dias Loureiro, Dr. Miguel Cadilhe, os quais, a seu tempo e no passado defenderam exactamente essa restrição de benesses aos pobres.

Também é arriscado falar das causas sociológicas que levam à desordem nos bairros de realojados e nos subúrbios em geral, porque estamos a justificar o crime. Claro que as pessoas de idade maior têm que ser responsabilizadas pelo que fazem, particularmente quando exercem violência física sobre outrem. Mas por que diabo é que isto só ataca os pobres? Será que já nascem assim? Será genético? Ou será que nascem de facto com o destino marcado? Alguns, a maioria, foge ao destino e faz um esforço sobrehumanao. Muitos, é verdade, conseguem tirar cursos superiores. Mas muitos têm toda a conjuntura para descarrilar. E a vida corre-lhes mal – acabam na prisão.

Vêm-nos então dizer que isto é uma “crise de valores”. Cheira-me sempre um bocadinho a sacristia, com o devido respeito pelos meus amigos cristãos…

Isto é, pelo contrário, a exposição dos valores em que se tem baseado o nosso sistema – lucro individual, exploração do trabalho de outrem, exército de desempregados para fazer baixar os salários.

A ganância é o sistema. É o lucro o que faz correr os investidores. Por isso um tão grande desprezo pelos serviços públicos, que não têm lucro privado. São só serviço…

Tudo isto me faz lembrar uma cena descrita por António Lobo Antunes não sei se numa crónica se num livro. As senhoras “bem” antigamente tinham cada uma o seu pobre ou os seus pobres de estimação a quem davam esmola. E uma tia do António um dia deu vinte e cinco tostões ao seu pobre e disse-lhe: “ Agora vê lá onde é que os vais gastar!" Respondendo-lhe ele: “Então o que quer? Que eu com isto vá comprar um Cadillac?”

In Revista Perspectiva nº 21, Junho de 2009.