sexta-feira, 21 de maio de 2010

A Bolsa ou a Vida

Desde há alguns anos surgiu uma nova espécie literária, que é o romance policial político e social em que, a par da trama conduzida com os ingredientes q.b. para não conseguirmos largar o livro, passa-se informação política, que nos ajuda a perceber os ambientes.

É o caso dum romance em três grossos volumes, que tem feito moda em outros países europeus e que espero venha a ser traduzido em português – o “Millénium”.

Foi escrito por um jornalista sueco, Stieg Larsson. Este homem, que morreu em 2004, quando tinha acabado de entregar o original dos três volumes na tipografia, especializara-se em ensaios sobre economia, fizera reportagens de guerra em África e era chefe de redacção da revista sueca Expo, observatório de manifestações comuns do fascismo.

Neste livro há um super-herói, um jornalista e uma super-heroína, que é hacker, completamente fantástica e inverosímel. Mas a realidade política e social retratada é não só verosímel, como referida com os nomes reais de políticos e outros personagens. Reporta-se aos anos 80 e os crimes já prescreveram. No final fica a perceber-se que organização matou Olof Palm.

Mas interessa agora mostrar que em relação à crise financeira o livro é premonitório, como o foram organizações anti-neoliberalismo. No final do primeiro volume o jornalista herói responde a uma entrevista na televisão de uma forma que é pedagógica.

Este jornalista, o herói, tinha demonstrado na sua revista, o Millénium, um jogo financeiro altamente fraudulento, que fez escândalo na Suécia.

Puseram-lhe então uma pergunta sobre a responsabilidade do Millénium no naufrágio da economia sueca ao qual se assistia nesse momento.

- “Afirmar que a economia da Suécia está a sofrer um naufrágio é falta de senso”, responde o jornalista.

A colega da televisão fica perplexa e comenta: “vivemos neste momento o maior desmembramento individual da história bolsista sueca. – e você pretende que é falta de senso?”

E o jornalista explica pedagogicamente:

É necessário distinguir duas coisas- a economia sueca e o mercado bolsista sueco. A economia sueca é a soma de todas as mercadorias e de todos os serviços que são produzidos neste país em cada dia. Trata-se dos telefones Ericsson, dos carros Volvo, dos frangos Scan e dos transportes que vão de Kiruna a Skövde. Aí está a economia sueca e está tão poderosa ou tão fraca hoje como o era há uma semana”.

E continua:

“A Bolsa é outra coisa. Não há nenhuma economia e nenhuma produção de mercadorias ou serviços. Só há fantasmas em que de hora a hora se decide que agora tal ou tal empresa vale alguns milhões a mais ou a menos. Isso não tem absolutamente nada a ver com a realidade, nem com a economia sueca”.

Pergunta-lhe a jornalista da televisão se não tem nenhuma importância que a Bolsa esteja em queda livre.

“Não, não tem a mínima importância”. “Isso só significa que um certo número de grandes especuladores estão actualmente a transferir as suas carteiras bolsistas das empresas suecas para as empresas alemãs.

São as hienas da finança que um repórter com um pouco de tomates deveria identificar e pôr no “cadafalso” como traidores à pátria. São eles que sistematicamente e porfiadamente minam a economia sueca para satisfazer os interesses dos seus clientes.

Em seguida a jornalista pergunta-lhe se os media não têm responsabilidade.

Responde o jornalista – herói: “Sim, os media têm particularmente uma enorme responsabilidade. Durante vinte anos, um grande número de jornalistas de Economia não se debruçaram sobre este caso. Pelo contrário, contribuíram para construir o seu prestígio através de retratos insensatos de idolatria. Se tivessem cumprido o seu papel correctamente durante todos estes anos, não nos encontraríamos hoje nesta situação”.

Vinte anos depois deste caso sueco, as hienas não se limitam a transferências entre a Suécia e a Alemanha. A globalização permite às hienas correr mundo em segundos.

E a chamada “economia real” já passou a ser afectada pelo dinheiro fantasma.

Pelo caminho fizeram-se fortunas fabulosas. E pereceram os fracos do sistema – os que pagam a crédito e os que vão perder emprego. Os que estão na vida.

Talvez se possa imaginar um filme de desenhos animados em que jornalistas de Economia, comentadores de economia “bem pensantes” e “hienas” passem num filme bobinado ao contrário e engulam todas as palavras que disseram.

In Revista Perspectiva nº 15, Novembro de 2008.