sexta-feira, 21 de maio de 2010

Os negócios da Saúde

Neste momento, em que todos os dias ouvimos as notícias dos milhares de desempregados portugueses, todos vítimas da crise financeira e económica e em última análise do sistema, há uma consolação que nos resta. Quando se fecharem todas as portas, está ainda aberta a porta do Serviço Nacional de Saúde. Uma porta que dá muitas vezes para labirínticos corredores de burocracia e de tempo de espera, mas que está aberta. E lembro-me sempre do que está a acontecer, com 45 milhões de norte -

- americanos, que além de estarem lançados na miséria pela espiral financeira, muitos deles despejados das casas por falta de pagamento do crédito bancário, não têm nenhum serviço de saúde. Terá Obama coragem para aproveitar a crise e instaurar um SNS, vencendo as ameaças das Companhias de Seguros que Hillary Clinton não teve a coragem ou não foi capaz de vencer quando era esse o seu projecto? Os norte-

- americanos de baixa condição social, que não têm seguros ou que têm esses seguros de bairros pobres que só cobrem o mínimo, o que é que podem fazer se tiverem uma leucémia ou partirem uma perna? Ficam entregues ao destino ou à caridade. Já nem sequer se podem “empenhar” e pagar o resto da vida, porque não podem recorrer ao crédito. Estranho destino o dos cidadãos de um dos países mais ricos do mundo, centro do Império e onde uma parte da população pode vir a situar-se na área da dos “ países em vias de desenvolvimento”.

Era o que nos teria sucedido, ou pode vir a suceder, se tivéssemos ido nos cantos de sereia dum sistema de saúde baseado nos seguros de saúde ou no pagamento de acordo

com a situação social.

O nosso SNS vive do orçamento geral do Estado e portanto dos impostos e de outros rendimentos do Estado. Se juntarmos os adultos que não têm rendimento suficiente para pagar impostos e as crianças e jovens, provávelmente há 4 milhões que os não pagam

( a não ser indirectamente o IVA). Portanto quem paga impostos está antecipadamente a pagar os cuidados de saúde de que pode vir a necessitar e, num princípio de solidariedade, a pagar os cuidados daqueles que são mais pobres. Este é o mesmo princípio da lei que vigora no SNS inglês, um dos primeiros a ser criado depois dos soviéticos e a que vigora nos países escandinavos.

No tempo da nossa ditadura só beneficiavam dos serviços os que trabalhavam e portanto descontavam para a “ Caixa” e daí que os mais idosos ainda hoje digam que vão à

“ Caixa” quando vão ao Centro de Saúde. Eu própria quando estou a lidar com pessoas mais idosas sou capaz de dizer então “ o que é que lhe disse a minha colega da Caixa “?,

para me fazer entender. No entanto, o Centro de Saúde, já entrou suficientemente na cabeça das pessoas. Mesmo para reclamar, umas vezes com razão, outras vezes sem ela. Na altura das “Caixas”, os que se serviam dos serviços de saúde, particularmente os hospitalares, tinham que ir buscar à Câmara Municipal o certificado de “indigente”

( palavra adocicada mais tarde por “ sem rendimentos”) para não pagarem aquilo que de facto não podiam pagar. Era a “santa caridadesinha” na sua plena forma. Mas atenção que este discurso está aí com outras roupagens! Actualmente quem benefiaria dessas situação seriam as Companhias de Seguros. Não se estranhe portanto que ao ouvirmos políticos defenderem o fim do SNS gratuíto no curriculum ligações a companhias de seguros. É a endogamia nacional. Ou internacional...

Nesta época de crise o SNS gratuíto não pode querer dizer, no entanto, um SNS – saco azul, onde se vai buscar sem responsabilidade. Tem de haver uma responsabilização do cidadão perante o seu SNS. Ninguém gosta de ser hospitalizado e muito menos de fazer cirurgias sem necessidade e por isso as taxas moderadoras não fazem sentido. E muito menos se pode considerar que um médico interna um doente sem necessidade num hospital já apinhado. No entanto, temos que reflectir todos, utentes e médicos, sobre o uso dos exames auxiliares de diagnóstico e sobre o uso dos medicamentos. Ainda bem que temos meios técnicos correntes sofisticados e ainda bem que temos medicamentos que prolongam a vida e lhe dão qualidade. Mas... cada vez que, com um gesto se pede um exame ou se prescreve um medicamento, temos que saber que se gasta dinheiro. Às vezes muito dinheiro. E os utentes, rodeados por uma informação medicalizada e com a ideia da saúde e da vida eterna a todo o custo, têm também que reflectir sobre isso. E sobre o seu próprio corpo...

Quantas vezes em relação a doentes que me dizem “ então agora não é preciso fazer mais análises?” ou “ para isto não há medicamento nenhum?” e eu respondo pela negativa, vejo uma certa desilusão. Nas farmácias vendem-se medicamentos e também

“ suplementos alimentares”, cremes, leites de beleza, pastilhas, “bem estar”. O ambiente é refrescante, claro, luminoso. Apetece mesmo comprar! É a sociedade de consumo no seu pleno. Diga-se de passagem que quando os portugueses descobriram a cana de açucar e depois o respectivo conteúdo, aquele granulado doce era vendido nas farmácias como um bem raro e precioso.

Qual é o negócio?

Qual é então o negócio e o objectivo dos privados, dos hospitais que nascem como cogumelos? Nem há população com seguros, nem convenções, nem há “ricos” que os paguem. O único objectivo das grandes empresas de saúde privadas é que o Estado não cumpra o seu dever fornecendo o máximo e o melhor de serviço de saúde. Desse modo eles poderão suprir essa falta sendo eles próprios fornecedores de serviços ao Estado.

Se o Estado não faz hemodiálise, o Estado será cliente dos serviços privados. Se o Estado não faz radioterapia, o Estado será cliente dos serviços privados. Se o Estado não fizer cirurgia bariátrica aos grandes obesos, o Estado terá( teria) que ser cliente dos serviços privados.

Nos hospitais privados, as consultas são mais baratas do que nos consultórios individuais e os médicos até não são mal pagos. Mas logo ali pedem-se análises, ecografias, radiografias, exames cardíacos que serão feitos...ali. Compreende-se a fúria e as providências cautelares com que foram recebidos os postos publicos de análises abertos nos seis Centros de Saúde ligados aos Hospitais de Santa Maria – Pulido Valente. Fúria, providências cautelares e porque não algumas ameaças?

É este o negócio. Mas, no entanto, em tempo de crise, o negócio está tremido. Ninguém os avisou e isto do capitalismo sem freio é de facto como o tal bater de asas da borboleta que vai desencadear uma catástrofe no outro lado do mundo. Neste caso em todo o mundo.

Mas se o negócio está tremido, esperam-se com lógica chuvas de críticas sobre o SNS. Este de facto tem problemas. Por exemplo ter havido anos em que só entraram para Medicina em todo o país 190 alunos, os quais só doze anos depois se tornam especialistas.

Actualmente e até 2012, altura em que começaremos a receber os novos especialistas depois do alargamento de entradas, vai ser muito difícil manter urgências eficazes em todo o país. Não serão por acaso os responsáveis por este buraco os mesmos que agora criticam o SNS?

In Revista Perspectiva nº 18, Março de 2009.

Uma questão de bitola

Estou a referir-me aos comboios. E particularmente ao projecto do comboio de alta velocidade que poderá ligar-nos a outros países, se as forças que puxam para trás não o encolheram.

Só viajo de comboio. E uma a duas vezes por ano saio para o resto da Europa através do caminho de ferro. Quanto às nossas possibilidades de, por esse caminho, chegarmos aos outros países europeus a explicação é simples. Daqui para Madrid viaja-se num comboio confortável, mas parte-se daqui às 22h00 de um dia e chega-se a Madrid às 8h00 do dia seguinte. É simpático, mas longo. E chegados a Madrid por aí ficamos. Entre a Espanha e a França e o resto da Europa levanta-se o muro dos Pirinéus. Se quisermos ir pelo Sul temos mais umas boas horas até Barcelona com mudança de comboio e de estação e depois de Barcelona para França outras tantas, com mudança de comboio.

Resta-nos então o velho Sud-Expresso.

É nesse que eu vou para a “Europa”. E é aliás esse o trajecto mais rápido, apesar de tudo. É, em termos de comboio, a nossa porta de partida e chegada.

Um parque temático

Pois bem, aqueles da minha geração que tiveram nostalgia das viagens dos seus verdes anos podem experimentar, porque está tudo igual. Parte-se de Santa Apolónia às quatro da tarde e chega-se a paris no dia seguinte cerca das duas da tarde, não já à gare de Austerlitz mas à de Montparnasse. É a mesma carruagem balançante que atravessa o nosso interior, o mesmo wagon-restaurante, com os candeeiros sobre as mesas e os empregados simpáticos que nos servem. As mesmas casas de banho … Só falta a entrada dos Pides em Vilar Formoso, mas temos a paragem durante a noite em Medina del Campo. Eu gosto daquilo. Instalo-me na cabine como se fosse num escritório, leio, escrevo e durmo durante a noite. O pior é que às sete da manhã temos que pegar nas malas, descer do comboio, atravessar gares, por vezes subir e descer escadas e esperar para nos metermos no TGV que faz Hendaye – Paris. Tudo isto por causa da bitola: as linhas de comboio de Espanha e Portugal têm uma distância diferente dos carris dos franceses, medida que foi tomada após as invasões de Napoleão, não fosse eles virem outra vez e de comboio! No regresso, outra vez a mesma cena, mas desta vez em Irun. Para mim de forma agravada porque venho carregada de livros. Multiplico as mochilas e as rodinhas e juro que nunca mais.

E, no entanto, quando chego à “Europa” corro as cidades e as fronteiras sem qualquer paragem, com troços de TGV, alternando com troços sem TGV, sempre sem sobressaltos e em comboios de alta qualidade. Paris – Berlim, Paris – Viena, Paris – Veneza, Paris – Roma, Viena – Budapeste. Faço Paris – Bruxelas em uma hora e Paris – Amesterdão em três. Ora bem, quando os

estrangeiros entram em Portugal devem ter a sensação que eu tive ao entrar na Roménia quando fiz o Oriente – Expresso. Sair no comboio a meio da noite, meter-me em carruagens do fim do mundo, com casas de banho do fim do mundo (vá lá que as nossas têm sanitas embora em mau estado, as deles têm buracos – mais higiénico, mas um pouco incómodo), horários de “llega quando lhega”, estofos poierentos. Muito típico e divertido. Deve ser a mesma sensação que têm os estrangeiros ao entrar na Península Ibérica. É uma espécie de safari, olham para nós como macaquinhos simpáticos e até estranham que os macaquinhos saibam tão bem falar línguas. Deve ser por isso que o comboio vem sempre cheio e esgota os lugares com muita antecedência. Vêm ao parque temático – os países de antigamente.

Este é o país que querem?

É este o país que querem aqueles que rejeitam o comboio de alta velocidade? Querem que sujemos a Roménia ou a Albânia da ponta ocidental? Ou querem mudar a bitola mas manter os mesmos comboios?

Pormos uma grelha à volta do país e vendermos bilhetes podia ter a sua graça se fossemos auto-suficientes. Se produzíssemos o que comemos, se tivéssemos dinheiro para comprar tecnologia. Mas não é assim. Somos dependentes do estrangeiro, estamos integrados na Europa e dentro desta não há fronteiras.

O país pequenino e atrasado de Salazar durou quase cinquenta anos e só foi bom para as classes privilegiadas. Quem tiver dúvidas que reveja os documentários do António Barreto sobre o passado. Era um país miserável, de pés descalços, desdentados e analfabetos. Os partos eram uma ameaça de morte e por isso os gritos e as caras de caso do mulherio circundante antecipavam as dores reais. Trabalhar com as mãos era uma vergonha. A esmola uma instituição. As senhoras finas “não precisavam de trabalhar, mas aprendiam as prendas domésticas para saber mandar”. A corrupção era a regra, mas havia censura e não havia processos. O país onde se tratavam as senhoras pobres por “tiazinhas” e onde agora as “tias” falam dos “piquenos”.

O “antigamente é que era bom” acabou. Mas no entanto há sempre as forças que puxam para trás. Que têm nostalgia do país pequenino, salazarento, bolorento. Que acham que o investimento público deve ser feito nas pequenas e médias empresas, como ele fazia, porque esse era o seu apoio social. Mesmo que elas produzam mal e mau. Só que nessa altura vendia-se obrigatoriamente o mau para as colónias. E agora que já não há o mercado das colónias? Fechamos a porta e consumimos nós Mas como é que podemos consumir se tantos não têm dinheiro porque estão desempregados? No entanto dizem que é necessário “gastar menos”. Já explicaram onde: na Saúde e na educação, nos investimentos públicos em geral.

Este é o país da bitola estreita. O país que tem medo de ser invadido. O país de vistas curtas. O país que fala “verdade” a respeito dos outros, mas que omite discreta e sonsamente as suas tristes verdades. O país da depressão.

O país que evoca as glórias do passado, de forma provinciana.

Esse é o país que não podemos querer e que não podemos deixar para os nossos filhos. Tem uma bitola demasiado curta.

In Revista Perspectiva, 2009.

Quem dá aos pobres empresta a Deus

A propósito dos incidentes do Bairro da Bela Vista em Setúbal vários “sábios” em ciências humanas e desumanas aproveitaram para criticar o alojamento em bairros sociais, desta vez encontrando neles a causa de tais distúrbios . Não se percebe bem o que é que estes sábios queriam e querem. Que as pessoas tivessem permanecido nos bairros da lata? Gostavam mesmo é de os ver na Curraleira, na Musgueira, “nas ilhas” do porto, nos bairros degradados de Setúbal, na Azinhaga da Torrinha em Lisboa, na Pedreira dos Húngaros de Caxias? Claro que esses cenários eram óptimos para grupos de senhoras “tias” e meninas betas irem fazer caridade ou “solidariedade”, em dose q.b. para ficarem de consciência descansada e o resto da semana dizerem “nós, graças a Deus, não nos falta nada” ou seja, várias casas, carros, barcos e motas, viagens de luxo, propinas milionárias em colégios estrangeiros e muita ociosidade. E como quem dá aos pobres empresta a Deus, isto funciona como uma espécie de PPR que soma pontos para a entrada no paraíso. Mesmo assim alguns filhos maus destas famílias bem fazem das suas. Mas não precisam geralmente de exercer violência.

Qual seria então a solução? Alguns sociólogos dizem de facto que não se devem criar guetos e que as pessoas a realojar deveriam ser misturadas nos bairros das pessoas “normais”. Mas quando isso acontece, aqui d’el-rei, que lhes metem marginais no prédio, ou que a casa se desvaloriza porque no edifício ao lado moram ciganos. Mas o gueto será mais gueto se for afastado com uma distância higiénica, se não tiver transportes, se não tiver escolas, lojas e espaço para associações e festas

Não se fala dos casos bem sucedidos, como os projectos SAAL, a Quinta da Cabrinha e numerosos outros casos. Como sempre as situações bem sucedidas não têm protagonismo nem visibilidade. Acho que todos deveríamos ter orgulho em ver milhares de pessoas que toda a vida viveram em condições infra-humanas (ao lado das outras em condições boas ou muito boas) e que passaram a ter sala, cozinha, quartos, água e luz. Já experimentaram ver a alegria dessas pessoas? Pode-nos compensar de muitas tristezas da vida. Já me aconteceu entrar sem aviso em casas de vários destes novos bairros e fico comovida como é que aquelas mulheres, depois de viverem toda a vida na terra e na lama, “aprenderam” a ter móveis arrumados, com bibelôs a seu gosto, tudo limpo. E digo as mulheres, porque quem manda nos bairros são as mulheres, quando há associações baseiam-se nelas e são elas que podem mediar.

Olha lá a mãozinha

Mas a verdade é que há uma área social que está sempre a vigiar e a chorar com a mão esquerda o que dá com a direita. O que dá, não. O que é obrigado a dar através dos impostos. O mesmo clamor se ouve em relação ao rendimento social de inserção e ao salário mínimo. O que eles gostariam mesmo é que os impostos fossem gastos na segurança, isto é na protecção dos seus bens e das suas pessoas. O que sobrasse seria para esmolas, que é o que deve entender-se pela “perspectiva social” política, visto nem quererem rendimento social de inserção, nem aumento do salário mínimo, nem bairros de realojamento e apelarem à “flexibilidade”. Então o que é social?

Entretanto vêem-se passar debaixo do nosso nariz os milhões do BPN, do BPP e do BCP, com os seus protagonistas, Dr. Oliveira e Costa, Dr. Dias Loureiro, Dr. Miguel Cadilhe, os quais, a seu tempo e no passado defenderam exactamente essa restrição de benesses aos pobres.

Também é arriscado falar das causas sociológicas que levam à desordem nos bairros de realojados e nos subúrbios em geral, porque estamos a justificar o crime. Claro que as pessoas de idade maior têm que ser responsabilizadas pelo que fazem, particularmente quando exercem violência física sobre outrem. Mas por que diabo é que isto só ataca os pobres? Será que já nascem assim? Será genético? Ou será que nascem de facto com o destino marcado? Alguns, a maioria, foge ao destino e faz um esforço sobrehumanao. Muitos, é verdade, conseguem tirar cursos superiores. Mas muitos têm toda a conjuntura para descarrilar. E a vida corre-lhes mal – acabam na prisão.

Vêm-nos então dizer que isto é uma “crise de valores”. Cheira-me sempre um bocadinho a sacristia, com o devido respeito pelos meus amigos cristãos…

Isto é, pelo contrário, a exposição dos valores em que se tem baseado o nosso sistema – lucro individual, exploração do trabalho de outrem, exército de desempregados para fazer baixar os salários.

A ganância é o sistema. É o lucro o que faz correr os investidores. Por isso um tão grande desprezo pelos serviços públicos, que não têm lucro privado. São só serviço…

Tudo isto me faz lembrar uma cena descrita por António Lobo Antunes não sei se numa crónica se num livro. As senhoras “bem” antigamente tinham cada uma o seu pobre ou os seus pobres de estimação a quem davam esmola. E uma tia do António um dia deu vinte e cinco tostões ao seu pobre e disse-lhe: “ Agora vê lá onde é que os vais gastar!" Respondendo-lhe ele: “Então o que quer? Que eu com isto vá comprar um Cadillac?”

In Revista Perspectiva nº 21, Junho de 2009.

A Bolsa ou a Vida

Desde há alguns anos surgiu uma nova espécie literária, que é o romance policial político e social em que, a par da trama conduzida com os ingredientes q.b. para não conseguirmos largar o livro, passa-se informação política, que nos ajuda a perceber os ambientes.

É o caso dum romance em três grossos volumes, que tem feito moda em outros países europeus e que espero venha a ser traduzido em português – o “Millénium”.

Foi escrito por um jornalista sueco, Stieg Larsson. Este homem, que morreu em 2004, quando tinha acabado de entregar o original dos três volumes na tipografia, especializara-se em ensaios sobre economia, fizera reportagens de guerra em África e era chefe de redacção da revista sueca Expo, observatório de manifestações comuns do fascismo.

Neste livro há um super-herói, um jornalista e uma super-heroína, que é hacker, completamente fantástica e inverosímel. Mas a realidade política e social retratada é não só verosímel, como referida com os nomes reais de políticos e outros personagens. Reporta-se aos anos 80 e os crimes já prescreveram. No final fica a perceber-se que organização matou Olof Palm.

Mas interessa agora mostrar que em relação à crise financeira o livro é premonitório, como o foram organizações anti-neoliberalismo. No final do primeiro volume o jornalista herói responde a uma entrevista na televisão de uma forma que é pedagógica.

Este jornalista, o herói, tinha demonstrado na sua revista, o Millénium, um jogo financeiro altamente fraudulento, que fez escândalo na Suécia.

Puseram-lhe então uma pergunta sobre a responsabilidade do Millénium no naufrágio da economia sueca ao qual se assistia nesse momento.

- “Afirmar que a economia da Suécia está a sofrer um naufrágio é falta de senso”, responde o jornalista.

A colega da televisão fica perplexa e comenta: “vivemos neste momento o maior desmembramento individual da história bolsista sueca. – e você pretende que é falta de senso?”

E o jornalista explica pedagogicamente:

É necessário distinguir duas coisas- a economia sueca e o mercado bolsista sueco. A economia sueca é a soma de todas as mercadorias e de todos os serviços que são produzidos neste país em cada dia. Trata-se dos telefones Ericsson, dos carros Volvo, dos frangos Scan e dos transportes que vão de Kiruna a Skövde. Aí está a economia sueca e está tão poderosa ou tão fraca hoje como o era há uma semana”.

E continua:

“A Bolsa é outra coisa. Não há nenhuma economia e nenhuma produção de mercadorias ou serviços. Só há fantasmas em que de hora a hora se decide que agora tal ou tal empresa vale alguns milhões a mais ou a menos. Isso não tem absolutamente nada a ver com a realidade, nem com a economia sueca”.

Pergunta-lhe a jornalista da televisão se não tem nenhuma importância que a Bolsa esteja em queda livre.

“Não, não tem a mínima importância”. “Isso só significa que um certo número de grandes especuladores estão actualmente a transferir as suas carteiras bolsistas das empresas suecas para as empresas alemãs.

São as hienas da finança que um repórter com um pouco de tomates deveria identificar e pôr no “cadafalso” como traidores à pátria. São eles que sistematicamente e porfiadamente minam a economia sueca para satisfazer os interesses dos seus clientes.

Em seguida a jornalista pergunta-lhe se os media não têm responsabilidade.

Responde o jornalista – herói: “Sim, os media têm particularmente uma enorme responsabilidade. Durante vinte anos, um grande número de jornalistas de Economia não se debruçaram sobre este caso. Pelo contrário, contribuíram para construir o seu prestígio através de retratos insensatos de idolatria. Se tivessem cumprido o seu papel correctamente durante todos estes anos, não nos encontraríamos hoje nesta situação”.

Vinte anos depois deste caso sueco, as hienas não se limitam a transferências entre a Suécia e a Alemanha. A globalização permite às hienas correr mundo em segundos.

E a chamada “economia real” já passou a ser afectada pelo dinheiro fantasma.

Pelo caminho fizeram-se fortunas fabulosas. E pereceram os fracos do sistema – os que pagam a crédito e os que vão perder emprego. Os que estão na vida.

Talvez se possa imaginar um filme de desenhos animados em que jornalistas de Economia, comentadores de economia “bem pensantes” e “hienas” passem num filme bobinado ao contrário e engulam todas as palavras que disseram.

In Revista Perspectiva nº 15, Novembro de 2008.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Solidariedade ou Esmola

Repartição das consequências da crise? Solidariedade? Só se for esmola.

Vejamos:

O salário médio dos 50 primeiros patrões franceses é de 383.000€ por mês e aumentou 20% em 2007. O patrão mais bem pago da França, Jean-Philippe Thierry, dirigente dos Seguros Allianz, onde deixamos o nosso dinheiro, tem como salário 1,9 milhões de euros por mês. O segundo classificado, Pierre Verluca, da Vallourec aumentou o salário 32% em 2007 (12,4 milhões de euros num ano) embora a empresa só tenha aumentado 8% de lucro.

Segundo a revista francesa Capital sucederam-se os beneficiários deste Jackpot, quando a crise já estava a estalar.

Mas quando as empresas financeiras rebentam, mesmo este pessoal recebe os chamados “pára-quedas dourados”. Quando Standley O’Neal, presidente da Merrill Lynch foi “despedido” recebeu 161 milhões de dólares; quando em 3 de Outubro de 2008 o banco franco–belga Dexia teve que ser recapitalizado de urgência, o patrão receberia 3,7 milhões de euros. Parece que vai renunciar.

Em França o inquérito anual da revista Expansão publicado em Maio revelava que os patrões do CAC 40 aumentaram os salários de 58% em 2007.

Entretanto calcula-se que estes cérebros responsáveis pelas manobras na alta finança fizeram desfazer-se em fumo 25.000 biliões de dólares só nos EUA.


Os que aterram sem pára-quedas


Consequências? Nos EUA nem todos os cidadãos estão inscritos na Segurança Social e quando estão só recebem na reforma 40% do salário. O restante depositaram nos chamados “fundos de pensão”, que são jogadas na bolsa por estas empresas financeiras. O que aconteceu então? Cinquenta e um milhões de americanos viram esfumar-se as suas economias de vários anos em poucos dias. Os fundos perderam 2.000 biliões de dólares em quinze meses. Os responsáveis? São os tais que caíram com o pára-quedas dourado.

O mesmo se passa na Polónia, na Hungria e na República Checa, cujos governos e populações caíram no canto da sereia da “liberdade” de descontar para onde entendem e não haver obrigatoriedade de descontar para a Segurança Social do Estado. Já ouvimos esse canto da sereia aqui e sempre ligado a governantes com um pé no Governo e outro nas Companhias de Seguros. Felizmente que em Portugal se tem mantido a obrigatoriedade da Segurança Social do Estado. Mas quantas vezes ouvimos regressar a conversa de que “tudo pode ser privatizado” ou então de que “uma parte vai para o Estado e a outra pode ser alternativa e investida em instituições privadas que cuidarão do nosso dinheiro como cuidam do deles”? Os resultados estão à vista.

As saídas com os pára-quedas dourados acarretam desemprego e miséria para muitos outros. Nas grandes cidades já se assiste aos pobres a recuperarem restos nas exposições de alimentação. E talvez sejam apenas pobres “assim-assim” ou “remediados”, como se dizia antigamente.

E o pânico reina entre os chamados quadros, o pessoal que é bem tratado, trabalha nas gaiolas de vidro dos open-space e tem mordomias. Mas os accionistas não querem baixar os lucros. Consta que em Portugal serão despedidos 500 delegados de informação médica. É o pânico a invadir a classe média.

Mas perante tantos milhões e biliões distribuídos pelos responsáveis da crise pode-se falar de modestas somas que poderiam ter outro destino: bastavam 22,2 biliões de euros para erradicar a fome no mundo e 3 biliões para tratar 19 milhões de crianças. Ou talvez bastasse que se abrisse a porta aos produtos agrícolas dos países pobres.

Indo procurar em Marx os comentários ao “dinheiro usurário” ou seja o capital financeiro que na época era impossível imaginar a dimensão que viria a ter um século e meio depois ele cita (imagine-se!) Lutero:

“Na forma à moda antiga, ainda que constantemente renovada, do capitalista, no usuário (o que empresta dinheiro a juros), Lutero ilustra muito bem a ânsia de domínio como elemento do impulso para o enriquecimento:”Os pagãos puderam calcular pela razão que um usuário é um quadruplo ladrão e assassino. Nós cristãos, porém, temo-los em tal honra que quase os adoramos pelo seu dinheiro…” “(…) os pequenos ladrões estão a ferros, os grandes ladrões andam a ostentar ouro e seda… por isso não há maior inimigo do homem na terra (depois do diabo) do que um avaro e usuário, pois ele quer ser deus sobre todos os homens”, quer “(…) que ele sozinho possa ter tudo e que toda a gente receba dele como de um deus e seja eternamente seu servo”.

Depois explica, pedagogicamente como é seu hábito, que o dinheiro que não se transforma em mercadoria para se transformar em mais dinheiro é a maior anomalia do sistema.

Eu vou buscar a Frei Bento Domingues e à sua crónica de domingo no Público (7.12.08) para dizer que:

“Nem só de pão vive o homem, mas sem pão é difícil”.

“(…) A ética desses investimentos e jogos é anti-solidária: a riqueza de uns implica a pobreza de outros”,

Portanto, solidariedade é inverter o sistema e não atribuir isto apenas a falhas ou erros de ética. Isto é o sistema. Solidariedade é invertê-lo. O resto é esmola.

In Revista Perspectiva nº 16, Dezembro de 2008.